Sola Scriptura

 

   

  Sola Scriptura

 

por Lloyd Gaston

 
   
Os números [1], [2],... referem-se às notas de fim do texto   inglês. 
Algumas destas encontram-se junto ao texto ao que se referem, traduzidas ao português.
   
 

Sempre, pode-se dizer, gostei do slogan sola scriptura. É uma frase de Reformação   que aprendi de Karl Barth e, desde então, não tenho pensado realmente muito sobre ela.   Serve de rótulo útil para expressar a convicção de que Escritura deva ter autoridade não   justamente dentro da Igreja, mas sim sobre ela. Mantive essa convicção quando ensinava num   departamento de Estudos Religiosos – um lugar muito seguro para nele preservar seus ilusões   teológicas -, mas ela causou problemas quando vim a uma escola teológica, quando pensei   que, se Escritura tem autoridade sobre a Igreja, eu deveria naturalmente ter autoridade   sobre colegas que ensinavam somente história de Igreja e prática eclesial. Desnecessário   dizer que não fui embora com isso! Precisei pensar sobre sola scriptura outra vez.

 

O conceito de cânon, de outro lado, nunca pareceu muito interessante. A insistência em   que a Palavra de Deus possa ser ouvida dentro de claramente definidos limites de especiais   documentos e em nenhum outro lugar, parece uma obsessão peculiarmente protestante, sem   justificação histórica nenhuma e com pouca teológica. Com respeito ao Novo Testamento,   gostaria antes da mais sóbria (common-sensical) definição de C. F. Evans: "Estes são   escritos que acompanhavam o movimento cristão, são os melhores, temo-los provado e eles se   têm provado."

 
    [1] C. F. Evans, Is Holy Scripture Christian? (Sagrada Escritura É Cristã?)   (London: SCM, 1971). Diz também: "É, finalmente, óbvio que a Igreja Cristã era   entendida como tendo uma sagrada escritura no sentido do Antigo Testamento, este que   conseguiu rebaixar de posto, mas que fatalmente tomou como modelo" (p. 17).    
 

Finalmente, com o que trabalhamos como exegetas é a existente literatura do antigo   Israel e da Igreja primitiva. Certamente, não há razão imediatamente aparente porque   esses dois empreendimentos devam ser combinados em uma única sociedade, a Sociedade   Canadense de Estudos Bíblicos; mas isso é um cão dormindo que podemos seguramente deixar   deitado (lying: também "mentindo"). Pelo menos era isso assim, até Brevard   Childs fazia tanto barulho abrindo sua lata de vermes quanto a despertar todos aqueles cães   dormentes. Com respeito tanto ao princípio e sola scriptura como às disciplinas da   nossa Sociedade, creio que o conceito de crítica do cânon apresenta tanto uma promessa   como uma ameaça. A ameaça, penso, está do melhor modo expressa no último livro de   Childs, "O Novo Testamento como Cânon: Uma introdução", e começo com ela.[2]   É uma obra que merece ser tomada a sério. Porque os termos da discussão estão postos por   Childs, esse modo de falar vai ser mais teológico do que talvez adequado, vai concentrar   sobre problemas do cânon do Novo Testamento e vai, inicialmente, continuar usando os termos   "Novo Testamento" e "Antigo Testamento".

 

O empreendimento de Childs está ou complexo ou desconcertando, ou, mais adequadamente,   os dois. Não só está a palavra "cânon" sendo usada em três diferentes   sentidos, aplicada 1) à forma final dum escrito redigido, 2) ao corpo de escritos visto   como unidade autoritativa e 3) ao próprio princípio de autoridade, mas ainda o adjetivo   "canonical" (‘canônico’) é aplicado a tantos substantivos além de ser supérfluo.   Deixem-me, então, tentar sumariar sua tese tão bem como posso, sem usar a palavra   "canonical". Primeiro, penso que sua maior preocupação está com a erosão da   autoridade do Novo Testamento na Igreja, uma preocupação na qual profundamente participo.   Mas não está absolutamente claro, como suas propostas vão fazer avançar a causa de modo   algum. Para insistir na importância da crítica de redação, é muito salutar, se bem que   Childs insiste que pretende mais que isso, e é difícil ver como isso iria ajudar a Igreja,   que nos seus cultos ouve Escritura em perícopes e não em livros. É também bem problemático   insistir que parábolas, por exemplo, não sejam interpretadas senão nas suas atuais   montagens literárias, como parece dizer num escuro excurso. Quando Childs diz que se deve   tentar entender como um antigo texto foi "transmitido, formado e interpretado afim de   apresentar sua mensagem acessível a sucessivas gerações de fiéis por quem e para quem o   for entesourado como autoritativo",[3] podemos cordialmente concorrer, se aquilo que   pretende for história de interpretação de Wirkungsgeschichte (história de efeito),   mas a palavra "shaped" (‘formado’) parece indicar que algo mais que isso está   entendido.

 

A parte mais problemática da proposta de Childs jaz no seu apelo ao cânon como coleção   autoritativa de escritos, pelo qual é dada uma autoridade absoluta à coleção como tal,   ainda à custa de escritos individuais nela contidos. A primitiva Igreja, coletando aqueles   escritos teve grandes problemas com a "particularidade das epístolas"[4] e a   "pluralidade dos evangelhos".[5]

 

Como Childs é um pensador conseqüente, vê os mesmos problemas, propondo que o cânon   do Novo Testamento nos force a entendermos Paulo como posto entre colchetes entre Atos e Epístolas   Pastorais (de fato: como Paulo foi assimilado pela antiga Igreja) e   "transcendermos" os quatro evangelhos a favor duma "harmonia dos   evangelhos" (já tentada por Taciano). Até no criticismo de texto, o princípio   orientador não é para ser a descoberta do texto mais antigo possível, mas antes aquilo   que Childs chama de "texto canônico", o texto aceito pela maioria na igreja   posterior. Por exemplo, a secundária terminação de Marcos é tomada como o texto   autoritativo, por harmonizar as histórias de aparência da ressurreição em todos os   demais evangelhos. Childs conscientemente contrasta o Paulo histórico e o Paulo canônico,[6]   o Paulo das cartas e o Paulo da Igreja,[7] com autoridade ficando (lying) só com o último.   Mas isso é rebaixar a autoridade de Paulo e dos evangelhos a favor da autoridade da Igreja   nos séculos três a cinco, apelando a uma idéia de cânon que assim não era; nem a sua   autoridade primária. O efeito acima de tudo do cânon parece ser trancar os escritores do   Novo Testamento numa gaiola feita pela Igreja. É curioso que Childs não discute um simultâneo   desenvolvimento paralelo ainda mais sério: a domesticação da Toráh através da formação   dum cânon do Antigo Testamento Cristão. Os dois processos não podem ser sem relação,   pois o resultado final é subordinar a gaiola chamada de Antigo Testamento à gaiola chamada   de Novo Testamento. As duas gaiolas não só não se relacionam uma a outra muito bem, mas o   vale entre elas tende a ser grosseiramente negligenciado, quando anda sob o nome de   "Intertestamental". Chegamos longe da nossa nostalgia inicial para sola   scriptura, e parece que é o problema do cânon e das duas gaiolas que precise primeiro   ser repensado.

 

Primeiro, porém, podia ser útil examinar algumas dos recentes trabalhos feitos sobre a   história da formação dos cânones do AT e do NT. No decorrer da preparação deste   discurso, fui surpreso sobre como tive de abandonar a maior parte da sabedoria recebida que   aprendi só 25 anos antes. É só olhar os dois artigos em IDB (S) por Freedman and   Sundberg para ver que a formação do AT era muito mais cedo e a formação do NT muito mais   tarde do que o consenso velho as iria ter. Há alguns conclusões históricos, com os quais   precisamos antes de tudo chegar a termos, mesmo se Freedman e Sundberg ainda não   representem um novo consenso.

 

Podia ajudar começar com algumas definições. "Cânon" é provavelmente não   um termo apropriado a ser usado. É palavra amplamente usada no período helênico para   "critério", "norma", "padrão de excelência" ou semelhantes,   e era usado na primitiva Igreja amplamente em três frases: cânon de verdade (kanon tes   aletheias, regula veritatis), cânon de fé (kanon pisteos, regula fidei) e cânon   da Igreja (kanon ekklesias, regula ecclesiastica). Por extensão, o termo era também   usado especificamente para decretos e concílios eclesiais, lei de igreja, regulamentos monásticos,   a parte central da Missa e elevação à santidade. Um sentido secundário, uma   "lista", não era aplicado a um grupo de escritos antes do fim do quarto século,   e bem pode ter-se dado por causa duma inovação técnica: a invenção do código. "Cânon"   nesse sentido, não é senão uma instrução ao copista (mais tarde tipógrafo): quando   produzires um código ou Bíblia, copia os itens nesta lista e nesta ordem. Muitas vezes   falamos "cânon", quando devemos falar "Escritura".

 

Pode-se definir a formação de Escritura (ou "cânon" em linguagem moderna)   como a deliberada seleção e coleção de antigos tradições num novo e autoritativo grupo   de escritos que tenham uma função normativa para uma comunidade, assim que qualquer outro   escrito ou dito normativos devem ser vistos em relação àquelas. Está claro que isso é   um evento muito decisivo na vida uma comunidade religiosa, um que provavelmente pode   acontecer só uma vez. A formação da Escritura, naturalmente, estabelece   "estabilidade", para usar a terminologia de James Sanders, mas se isso fosse tudo,   a comunidade iria logo morrer de arteriosclerose. Cânon deve, também, ser "adaptável   para vida",[8] o que quer dizer ser aberto para midrash,

 
    [9] Como acontece com outros termos populares, a palavra "midrash" é usada em   sentidos amplamente diferentes. D. Patte, Early Jewish Hermeneutics in Palestine (Primária   Hermenêutica Judaica na Palestina) (Missoula: Scholars, 1975), tenta introduzir   clareza terminológica fazendo distinções entre a) gênero literário, b) métodos   hermenêuticos e c) convicções hermenêuticas. A primeira pode (ou não pode) apresentar   no NT (Hb). A segunda é encontrada em importantes partes em alguns escritos do NT que não   podem ser entendidos senão como parte duma longa tradição midráshica (quer dizer: não   podem ser relatadas diretamente a uma "AT" sem fazer violência às duas). A   terceira, uma hermenêutica midráshica toma lugar entre dois pólos ‘Escritura’ e a   ‘comunidade de culto’" (p. 319) e pode ser dito que carateriza todos os escritos   do NT. J. Sanders parece habitualmente entender esse terceiro senso.    
 

para interpretação inovativa. É duvidoso, porém, se um segundo cânon possa ser   acrescido ao primeiro, porque então o novo cânon chega a ser o cânon real, ao que o   antigo se deve relacionar afim de estabelecer sua legitimidade, invertendo a seqüência de   tempo entre Escritura e midrash. Pelo menos, creio que isso era o caso no movimento cristão,   onde o estabelecimento do NT como cânon andou de mãos dadas com o rebaixamento da   Escritura do Antigo Testamento ao estado subordinado.

 
    [10] Veja meu "Legicide and the Problem of the Christian Old Testament: A plea for a   New Hermneutic of the Apostolic Writings" (‘Legicídio e o Problema do Antigo   Testamento Cristão: Um argumento para uma Nova Hermenêutica dos Escritos Apostólicos’)   Transformations in Judaism and Christianity after the Holocaust (Transformações no   Judaísmo e na Cristandade depois do Holocausto) (ed. Greenberg, et al., Bloomington:   Indiana University Press).    
 

Foi tal Escritura criada em Israel? D. N. Freedman argumenta que foi sim.[11] Segundo   ele, uma radicalmente nova redação e reordenação das tradições ocorreu durante o exílio   (580-550 A.E.C.) para produzir Toráh, Primeiros Profetas e Posteriores Profetas, como   "documentos públicos, para os quais a mais alta autoridade religiosa foi reivindicada,   promulgada por um oficial ... grupo na comunidade judaica".[12]

 

Mais ou menos uma geração mais tarde (cerca 500 A.E.C.), extensivas adições foram   feitas ao corpo dos Profetas Posteriores. Uma tão nuamente formulada tese tem,   naturalmente, necessidade de refinamento, este que, penso, Blenkinsopp proveu no seu   Prophecy and Canon (Profecia e Cânon).[13]

 

Os Escritos, a maioria dos quais existiam naquele tempo, não eram parte da Escritura, e   quando foram coletados e editados mais tarde, foram-no em relação cônscia à Escritura,   uma "redação cônscia de cânon", como Sheppard o chama, uma espécie de   resposta midráshica.[14] Poderiam ser chamados de "deuterocanônicos" a partir   duma perspectiva judaica, se cânon fosse uma palavra judaica. Em todo o caso, a existência   de Escritura, incluindo pelo menos muitos dos Escritos, pode ser aceita como de documentos   autoritativos por pelo menos alguns grupos, certamente no início do primeiro século   A.E.C.[15] Uma das razões

 
    [16] Mais uma é o atestado inconfundível de todas as partes do AT pelo fim do primeiro século   por 4Esra, Josefo e o NT.    
 

para dizer isso é, se Escritura produzir midrash, então, inversamente, midrash pressupõe   Escritura e, como Vermes diz, "nos escritos exegéticos do segundo século A.C., os   principais temas hagádicos já estão completamente desenvolvidos".[17] Nunca houve um   concílio eclesial em Jâmnia, e os Rábis não debateram seriamente inclusão ou exclusão.[18]   Mas o lugar de Escritura dentro do Judaísmo não é o meu tópico, e não posso senão   referi-lo a um livro interessante e acessível por Jack Lightstone.

 

Chegando agora à formação do cânon do NT,

 
    [19] Aqui me fio amplamente no excelente e breve livro de H. Y. Gamble, The New   Testament Canon: Its Making and Meaning (O Cânon do NT: Como Foi Feito e o Que Significa)   (Philadelphia: Fortress, 1985). Cf. também H. von Camphausen, The Formation of the   Christian Bible (A Formação da Bíblia Cristã) (London: Black, 1972).    
 

parece que foi transferida do fim do segundo ao fim do quarto século, pelo menos   parcialmente por causa duma nova datação do Fragmento Muratoriano.[20] Geralmente, não   envolveu "redação consciente de cânon", nem ocorreu num tempo crucial na vida   da Igreja.

 
    [21] O período crucial na vida da Igreja produziu, não um cânon, mas um midrash   fundamentalmente novo em escritos ocasionais, que têm sido entesourados desde então.    
 

É antes uma coleção heterogênea de vários escritos ocasionais. Seus limites não têm   validade autoevidente, e cada critério mencionado: apostolicidade, catolicidade,   ortodoxidade, uso tradicional, tem importantes excepções tanto de inclusão como de exclusão.   Particularmente, inspiração nunca foi aduzido como critério para canonicidade na   primitiva Igreja,[22] porque o Espírito era tido como dado à Igreja inteira.

 
    [23] 1Clemente reivindica ser inspirado pelo Espírito Santo, como p. ex. Romanos não o   faz. Podemos também notar que 1Clemente tem mais autoridade que Romanos na maioria dos   lugares na Igreja do segundo século.    
 

Nenhum dos escritos no NT reivindica autoridade canônica para si mesmo (Apocalipse   reivindica autoridade apocalíptica), e a maioria refere-se especificamente à Sagrada   Escritura fora de si mesma. Ninguém jamais foi capaz encontrar uma unidade no cânon do NT

 
    [24] Tratando de critérios na primitiva Igreja para a inclusão no cânon do NT, "só   se pode falar do princípio de não ter princípio nenhum", K. Aland, The Problem   of the New Testament Canon (London: Mowbray, 1962).    
 

(como o tem na Escritura do AT e Freedman), mas, em vez disso, temos aprendido falar das   variedades da religião do NT.[25] Como não se pode fazer estudos do NT hoje sem falar da   importância da tradição eclesial (e da continuidade desta com tradição "pós-canônica"),   a velha distinção da Reformação entre Escritura e tradição tem perdido toda a base   histórica.

 

Pode ser dito honestamente que a Reformação perdeu essa batalha. Os escritos separados   contidos no NT são todos produtos de tradição, especialmente os evangelhos, mas também   as epístolas, sendo aplicados em situações muito específicas.

 
    [26] Naturalmente, o mesmo pode ser dito dos separados escritos do AT, mas o ponto é que   estes não contêm tradição de igreja.    
 

Dois fenômenos, que são de grande embaraço para a primitiva Igreja, a pluralidade dos   evangelhos e a particularidade as epistolas paulinas, jazem no próprio coração do   entendimento contemporâneo desses textos. É verdade que "O Novo Testamento é o livro   da Igreja",[27] não só porque a Igreja criou o cânon nos séculos quarto e quinto,   mas também com respeito à composição dos escritos individuais nos séculos primeiro e   segundo. Todavia, o princípio de sola scriptura permanece essencial, se tem de haver   algum critério transcendental, pelo que a Igreja possa julgar e reformar a si mesma. Como   Barth disse, se tudo que nós temos é tradição, "a Igreja não é endereçada, mas   sim engajada num diálogo consigo mesma".[28] Vejamos se podemos encontrar um tal critério   transcendente, contra que as tradições da Igreja possam ser medidas e perguntar como o   possa ajudar na interpretação dos escritos do Novo Testamento.

 

Em resposta à questão teológica de identificar uma autoridade que não seja produto da   Igreja, mas sim sobre ela, a resposta dentro dum contexto cristão parece a primeira vista   ser óbvia; a formulação de Barth era que Jesus Cristo como a primeira forma da Palavra de   Deus tem autoridade sobre a Escritura como a segunda forma da Palavra de Deus, a qual tem   autoridade sobre a palavra proclamada como a terceira forma da Palavra de Deus. Se parece óbvio   que Jesus Cristo é o princípio canônico, não é óbvio de modo algum como alguém possa   entender essa declaração como alguma outra coisa que um princípio puramente formal.   Podemos olhar para duas clássicas tentativas para pôr carne no princípio.

 

A primeira é o conceito hierárquico da antiga Igreja, que diz que a autoridade corre:   Deus > Cristo > apóstolos > bispos > igreja. Isso pode ser visto, p. ex., em   1Clemente 42: "Os apóstolos receberam o evangelho para nós do Senhor Jesus. Jesus   Cristo era enviado de Deus e os apóstolos são de Cristo. Em ambas as instâncias o   ordenado procedimento procede da vontade de Deus, ... e os apóstolos, depois de pregar no   país e cidade, designaram seus primeiros convertidos a serem bispos e diáconos de futuros   fiéis. E isso não era inovação alguma, ... desde que a Escritura diz: ‘designarei   vossos bispos em retidão e vossos diáconos em fé (Is 60,17)." Ou em Justino, I   Apologia 39: "O Espírito de profecia fala deste modo: ‘Pois de Sião sairá a lei e   a palavra do Senhor de Jerusalém...’ (etc. Is 2,3). Pois de Jerusalém homens foram ao   mundo, doze de número e estes iletrados, de nenhuma habilidade no falar, mas pela força de   Deus proclamaram a cada raça de gente que eram enviados por Cristo a ensinar a todos a   palavra de Deus." Note como tanto Justino quanto Clemente baseiam seus argumentos em   Escritura! Essa teoria de sucessão apostólica era popular na Igreja antiga, e seus efeitos   estão ainda muitíssimo conosco hoje em dia. Não é senão essa teoria que justifica a   posição dos evangelhos nos primeiros lugares do Novo Testamento e a honra especial dada   aos evangelhos em certas tradições eclesiais. O problema é que isso está manifestamente   inverídico! O único apóstolo que contribuiu algum escrito ao NT, Paulo, dificilmente   alguma vez segue o seu curso em tradição recebida de Jesus, e ainda gaba-se que nunca o   conheceu (2Cor 5,16). Era uma linda teoria, mas aqui, seguramente, a teologia não tem uma   histórica ou bíblica base em que construir coisa alguma.

 

A tentativa moderna de basear revelação em tradição que se origine de Jesus, não   teve sucesso maior. Outra vez parece primeiro completamente razoável atribuir ao ensinar de   Jesus autoridade maior do que aos evangelhos que o reportam, talvez imprimir ainda suas   palavras em tinta vermelha. Mas é talvez significante que a Igreja nunca pensou em   preservar o ensinar de Jesus na língua em que o falou. Aqui o movimento Leben Jesu (Vida   de Jesus) atrapalha-se no fenômeno que já incomodava a Igreja antiga: a pluralidade de   evangelhos. Completamente à parte de qualquer moderno julgamento sobre a autenticidade de   ditos individuais, os evangelhos, vistos sinopticamente, mostram que os escritores de   evangelho eram completamente preparados para alterar a tradição de Jesus bastante livres,   afim de dirigir-se a seus próprios situações particulares. O ensino de Jesus não é   dado, mas sim precisa ser reconstituído. O problema é que não há duas reconstituições   que sejam iguais, e todas elas mostram evidências e seletividade baseada em desejos   religiosos modernos. A busca pelo Jesus histórico cavou finalmente a sua própria cova,   porque, quanto mais tentou reaver o ensino de Jesus, tanto mais chegou a ser aparente quanto   aquele ensino difere da figura de Jesus que teologia liberal desejava encontrar. Aqui há,   de fato muita areia trapaceira, e o empreendimento tem sido tranqüilamente largado em círculos   teológicos, mesmo se a sua influência está ainda muitíssimo em evidência na piedade   popular.

 

Antes de desistir da tentativa de encontrar no ensinar de Jesus o elo revelatório entre   Deus e a Igreja, poderíamos especular sobre como a situação poderia ter sido diferente se   Jesus teria escrito um livro. Se um tal livro enfatizasse descontinuidade, poderíamos ter   tido uma nova religião e uma nova Escritura, com pouco relacionamento ao que andava antes,   como é o caso do Corão. Sob tais circunstâncias, mas só sob tais circunstâncias, a   proposta e Marcion poderia ter sucedido. Mas se, como creio que tenha sido o caso, um tal   livro enfatizaria continuidade, não teríamos havido igreja nenhuma, pois os atraídos ao   ensino de Jesus teriam seguido sua chamada de tornar-se melhores judeus. Como Cristãos Gentílicos   podemos ficar bem agradecidos por, na providência de Deus, Jesus ter decidido não escrever   um livro.

 

Há um outro critério, um kanon tes aletheias, que esteja acima do cânon da   Igreja, no sentido duma lista de autoritativos escritos? A tradição luterana em particular   interessava-se na questão do cânon dentro do cânon. Note como a palavra "cânon"   está sendo usada em dois sentidos, "critério" e "lista". A mesma ambigüidade   importunou muito da discussão desde tempos antigos.[29] A declaração clássica de Lutero   é: "Aquilo é o verdadeiro teste pelo que julgar todos os livros ... quando vimos se   ou não promovem (treiben) Cristo... Aquilo que não ensina Cristo, ainda não é   apostólico, mesmo se São Pedro ou São Paulo fizerem o ensino. Demais: qualquer coisa que   pregar Cristo, será apostólica, mesmo se Judas, Anás, Pilato e Herodes o   fizerem."[30] Aqui está uma maneira de pôr Cristo no centro, não como um elo no   passar revelação através sucessão apostólica, mas em termos daquilo que Deus fez na   morte e ressurreição de Cristo. Aqui está um critério acima do cânon da Igreja, aquele   que efetivamente relativiza os escritos individuais sob o centro do evangelho. É, porém,   muito mais seriamente deficiente na sua subjetividade: se Tiago não promove Cristo para   alguns, aquele escrito o faz para outros. São talvez tais considerações que levaram E. Käsemann   a propor um cânon mais específico e objetivo cânon-dentro-do-cânon ou "centro   material" (Sachmitte), a saber a justificação dos ímpios. Isso é talvez um   pouco teológico e certamente muito paulocêntrico, mas também não é tão objetivo como   parece. Com igual força persuasiva, Stuhlmacher pode argumentar que o centro deva antes ser   "reconciliação".[31]

 

Sendo verdade que cada tradição eclesial e muitos cristãos individuais têm o seu cânon-dentro-do-cânon,   inconsciente ou reconhecidamente, não há critério para ajuizar seus reivindicações   rivais. Como Käsemann argumentou, "o cânon do NT não constitui o fundamento da   unidade da Igreja".[32] Mas também não pode dar razão alguma que compila de porquê   aquela unidade deva ser conseguida nos termos dele, e a Igreja permanece em diálogo consigo   mesma, sem uma sola scriptura endereçada a ela.

 
    [33] Havia muito fermento em círculos teológicos luteranos alemães, convenientemente   coletado por E. Käsemann, Das Neue Testament als Kanon; Dokumentation und kritische   Analyse zur gegenwärtigen Diskussion (O NT como Cânon; Documentação e Análise Crítica   para a Discussão Atual) (ed. E. Käsemann; Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht,   1970), com os seus próprios comentários, mas estes não ajudam singularmente, desde que   todos os contribuidores assumem que o AT não seja realmente Sagrada Escritura.    
 

Parece que poderemos estar num chão mais firme se quisermos apelar, não a uma moderna,   mas sim a uma antiga regula fidei, não a sucessão apostólica, mas sim a tradição   "apostólica" do segundo século. Isso tem a grande vantagem, não só de   concentrar no centro cristológico, mas sim de fazer isso com mais essenciais detalhes do   que os abstratos exemplos modernos citados. Não é que tencione expressar coisa qualquer além   de acordo básico com a regula fidei, mas alguns pontos devem ser notados primeiro.   Primeiro, a regula fidei não foi entendida para ser um compêndio da fé, mas sim   pressupõe a autoridade da Sagrada Escritura para teologia e prática. Segundo, a regula   fidei não foi derivada do cânon do NT, que ainda não existia, mas sim era, pelo   menos, um guia à interpretação midráshica da Sagrada Escritura (= AT). Terceiro, a regula   fidei não era senão parte da tradição apostólica (regula ecclesiastica),   esta que incluía liturgias "apostólicas" e regras eclesiais. Quarto, existe   bastante diversidade na tradição "apostólica", assim que é completamente   enganoso falar de a tradição: não havia senão tradições, e qualquer consenso   que desenvolveu era fenômeno secundário.[34]

 

Finalmente, estamos depois de tudo isso falando de tradições e não dum critério   (kanon) que transcende a Igreja. Não obstante, ouvimos uma indicação duma sola   scriptura, a escritura não criada pelas tradições da Igreja.

 

É possível puxar o conceito de tradição apostólica para dentro do primeiro século.   Muitos vão concordar com o método, embora não mais com o conteúdo, da teologia de   Bultmann. Este começa com o kerygma da Igreja (sing.!) de Jerusalém e helenística   como primária, continua com Paulo e João como os (únicos!) grandes "teólogos",   e conclui com uma longa seção sobre "Desenvolvimento em direção à Igreja   Antiga", incluindo material não-canônico.

 
    [35] Está-se tornando cada vez mais costumeiro ignorar as limitações de cânon no   escrever "introduções"; cf. p. ex. H. Koester, Introduction to the New   Testament (2 vol.s; Philadelphia: Fortress, 1982).    
 

Se a primeira é ingênua e a segunda restritiva demais, o nosso interesse está com a seção   final.. Embora Bultmann esteja certo vendo a continuidade entre os escritos "sub-apostólicos"   no NT e a primitiva Igreja, ele a vê como um declínio para "primitivo   catolicismo". R. E. Brown [36] e R. H. Fuller,[37] de outro lado, vêem o movimento   mais positivamente e entendem escritos pós-apostólicos, não como incluindo o evangelho,   mas sim como autoritativas indicações de como o evangelho esteja a ser transmitido a gerações   posteriores. É muito vantajoso deixando os inferiores limites do cânon do NT completamente   permeáveis..

 

O cânon do NT não é uma unidade e não pode servir de norma. Isso é certo, não só   dos escritos individuais, mas também dos kerygmata que contém. Eruditos tão   diferentes como W. Bauer e J..G. Dunn concordam com que o primitivo movimento cristão começou   com uma rica diversidade de kerygmata e evangelhos e cristologias e teologias. Isso   é só para esperar, desde que estamos afinal lidando com tradições eclesiais, e com ambas   as comunidades que as formularam, e as comunidades para os quais foram adaptadas. Na medida   em que houver unidade, esta jaze na convicção de que Deus tem agido em Jesus Cristo, e de   que esse Deus é o Deus da Sagrada Escritura. O significante subtítulo de ‘According to   the Scripture’ (‘Segundo a Escritura’) de C.H. Dodd é ‘The Substructure of NT   Theology’ (‘A Substrutura da Teologia de NT’). Escritura é o critério, o cânon, ao   que os primitivos cristãos apelavam, e que definitivamente não é a criação da Igreja.   Aqui, então, temos encontrado nossa sola scriptura.

 

A segunda Parte da proposta, penso, resulta inevitavelmente da primeira, o ancorar do   princípio de sola scriptura firmemente nas Sagradas Escrituras do antigo Israel. A   segunda tese é que é o melhor não falar dum cânon do Novo Testamento de modo algum, mas   antes de midrash (J. Sanders) ou explicatio (J. Calvin).

 
    [38] "Falando de Escritura, Paulo entende que chamamos de Antigo Testamento; como ele   pode dizer que ela faz o homem perfeito? Se isso for assim, aquilo que foi acrescentado   pelos apóstolos, parece ser supérfluo. Os escritos dos apóstolos contém nada além   duma simples e natural explicação da lei e dos profetas com uma clara descrição das   coisas expressas neles." (Comentário a 2Tim 3,17).    
 

Faz realmente diferença, quando alguém reconhece, com C. F. Evans, que   "Cristandade é sem paralelo entre religiões mundiais no ser nascida com uma Bíblia   no seu berço."[39]

 

Como a nova disciplina da crítica de cânon aponta, a criação do cânon da Sagrada   Escritura é um passo decisivo na vida duma comunidade. Jaze na natureza de cânon prover   estabilidade. Embora possa-se, em teoria ou em prática, negligenciar partes dele ou o   rejeitar por inteiro para começar uma nova religião, nenhum novo cânon pode ser acrescido   a cânon quando este estiver uma vez criado. Ao mesmo tempo, jaze na natureza de cânon ser   "adaptável para vida", e se for verdadeiramente para funcionar como Escritura,   ele clama por constante reinterpretação nas contínuas e crentes comunidades. Um necessário   correlativo da crítica de cânon é "midrash comparativo", que inclui história   de interpretação, mas é mais que esta. Se é verdade que, uma vez formado o cânon,   revelação está restrita ao texto canônico, deve também ser enfatizado que revelação   ocorre mesmo repetidas vezes nas crentes comunidades nas várias situações destas, por   vezes com significado radicalmente novo. Se o conceito de inspiração (e então de revelação   numa situação pós-canônica) for para ser significativo, deve referir não justamente a   uma transação privada no passado, mas sim àquilo que Deus faz no presente. Inspiração   ocorre todas as vezes que uma comunidade, na sua própria situação particular em tempo e   espaço, for inspirada, dentro da continuidade da inteira tradição de interpretação, a   ouvir o que Deus lhe diz na palavra da Sagrada Escritura. Cada Escritura, cada vez que (de   quando em quando) ela for inspirada por Deus, é proveitosa para ensino, reprovação, correção   e treinamento..." (2Tim 3,16). "Ubi et quando visum est deo", como   disseram os Reformadores. Como revelação é mais autoritativa do que um antigo texto,   assim midrash pode ser mais autoritativo para a comunidade do que o cânon como tal. Há uma   tensão entre um significado exegético dum texto, este que possa ser mais ou menos   estabelecido historicamente, e o homilético, sentido agora inspirado, este que é   verdadeiro para seu tempo e lugar, mas não é autoritativo para outras situações do mesmo   modo como o é o sentido exegético. O cânon permanece como sola scriptura, um como   controle sobre interpretações que reivindiquem ser revelações, mas não o são ou não o   são mais.

 

Haveria maiores problemas envolvidos, se a Igreja pensasse em ter dois cânones, um Velho   Testamento e um Novo Testamento.

 
    [40] Veja meu "Legicide" (‘Legicídio’) (nota 10).    
 

O problema é, naturalmente, muito maior que os nomes, embora a ele contribuam. Como bem   sabido, a palavra "Testamento" é uma famosa mal-tradução de Tertuliano, [41]   Realmente, preferia o termo "Instrumentum".

 

E enquanto "Aliança" podia ser bem apropriado para o primeiro cânon, não   carateriza adequadamente o segundo. O problema real, porém, jaze nos adjetivos   "Antigo" e "Novo", na medida em que forem tidos, consciente ou   inconscientemente, para ter mesmo um sentido qualquer que seja. Ou ainda, refiro-me ao   Cativeiro Babilônico da Escritura Hebraica sob as cadeias do conceito "Antigo   Testamento" ("Old Testament"). O conceito "Novo Testamento" pode   levar intérpretes desses documentos para dentro duma hermenêutica de antítese, e quase   sempre levou. A seguir, vamos olhar para algumas das conseqüências teológicas que advêm   duma hermenêutica de continuidade, que por turno depende, (penso), do conceito de Escritura   canônica e midrash autoritativo. Se eliminarmos o conceito de "Novo Testamento",   teremos de encontrar outro nome para referir a ele. Na falta e algo melhor, vou seguir o   exemplo de Paul van Buren e falar daqui em diante de Escritos Apostólicos.

 

Claro que o ensino de Jesus é para ser entendido completamente em categorias bíblicas e   que nada daquele pretende estar em antítese a estas. Seu ensinar pode, especificamente, ser   entendido como midrash autoritativo de passagens de Escritura que proclamam o reino de Deus,   dizendo que agora estão no ponto de serem cumpridas. Os ensinos de Jesus e seus feitos são   para ser interpretados sem resíduo como parte do Judaísmo do seu dia, em continuidade com   a Escritura e a tradição da interpretação pós-bíblica daquela. Isso quer dizer que,   por incorporação em Jesus como aquele em quem Deus tem agido para eles, os gentílicos têm   acesso completo à Escritura de Jesus (e as vivas interpretações desta) e ao Deus de   Jesus, que fala nelas. A doutrina da Trindade tem prioridade lógica sobre doutrinas cristológicas,[42]   algo ofuscado por formulações abstratas demais. O que é dito é que o "Pai" a   quem o "Filho" refere, não é nenhum outro que o Deus de Abraão, Isaac e Jacó,   o Deus de Sara e Rebeca e Raquel e Lia, o Deus de Moisés e Jeremias e Esdras e Ester. A   doutrina da Trindade formula o fato de que, através do Filho e do Espírito Santo, é este   o Deus a quem veneram os gentílicos também.

 

Também cristologia depende da Escritura, como interpretação desta, e não como adição   a ela. A formula de credo mais antiga nos Escritos Apostólicos, na sua forma mais curta,   declara que "Cristo morreu de acordo com as Escrituras... foi ressuscitado de acordo   com as Escrituras" (1Cor 15,3-5). Até a ressurreição não é reveladora em si, mas   sim é um evento ambíguo que em si é mudo. Igreja alguma jamais foi fundada na base da   ressurreição de Lázaro ou da filha de Jair ou do filho da viuva ou Tabita ou Êutico, ou   na da ascensão de Enós ou Elias ou Moisés ou Maria. O que faz a ressurreição de Jesus   única e o que lhe dá voz de revelação, é que era "segundo as Escrituras". O   Cristo ressuscitado "começando com Moisés e todos os profetas, interpretou-lhes em   todas as Escrituras as coisas que se referiam a ele" (Lc 24,27). Falta de reconhecer   isso, podia-nos levar a entender mal, ou até banalizar, as reivindicações feitas pela   cristologia dos mais antigos cristãos.

 
    [43] Isso não quer dizer que devamos tomar os métodos midráshicos da primitiva Igreja   como modelo de como devemos ler Sagrada Escritura. Mas não podemos entender antigos   escritos cristãos, senão entendermos a positiva relação destes à Sagrada Escritura,   contrastando a perspectiva do cânon posterior que baixa Sagrada Escritura a mero   "Velho Testamento".    
 

Paulo reivindica que seu evangelho foi "proclamado de antemão a Abraão",   porque "a Escritura sabia de antemão que Deus iria justificar os gentílicos por causa   de retidão" (Gl 3,8), que "o Evangelho de Deus referente ao seu Filho, foi   prometido mais cedo por seus profetas nas Sagradas Escrituras" (Rm 1,2), e que "a   Lei e os Profetas testemunharam a retidão de Deus através da fidelidade de Jesus   Cristo" (Rm 3,2s.). Estava sendo contado com que a Escritura era o critério para a   verdade do evangelho: aqueles que receberam a palavra "examinaram as Escrituras   diariamente para ver se as coisas eram assim" (At 17,11). E isso, ainda, não parece   ser reconhecido por eruditos modernos. Vielhauer,[44] particularmente, lamenta que a   interpretação do "Velho Testamento" por Paulo é completamente arbitrária e não   precisa ser levada a sério. Tudo disso é por causa dos conceitos de "Novo   Testamento" e "Velho Testamento", e do fato de que o primeiro pareça não   relatar-se muito bem ao último. Se começarmos, porém, com o conceito de Sagrada   Escritura, precisaremos levar a sério a transmissão viva desta no midrash de subseqüentes   comunidades. A tarefa do intérprete de Paulo será, então, não contrastar Paulo e o próprio   Antigo Testamento, mas sim tentar a reconstruir algo da história e interpretação do texto   e pôr Paulo com respeito a esses tradições midráshicas. Na medida em que isso possa ser   feito, o midrash próprio de Paulo, embora criativo, não é completamente arbitrário ou   estrangeiro. Aqui está um bom exemplo de como uma mudança de conceito possa enriquecer   exegese e dar mais, não menos, autoridade aos Escritos Apostólicos.

 

Entendendo os Escritos Apostólicos como midrash, quer dizer que não há linha nítida   que separe NT e primitiva Igreja. Claro que isso é historicamente verdadeiro, mas tem também   importantes conseqüências teológicas. Não devemos tentar a saltar das "cartas ddo céu"   postadas no primeiro século diretamente ao nosso tempo, mas cristãos devem reconhecer que   não são senão o mais recente estágio num processo, que começou com Páscoa à luz de   Esdras, e receber tradição e ouvir midrash de Escritura para iluminar seu próprio   presente. No quinto século, ainda, liturgia e regula fidei e uma tradição viva   eram muito mais importantes que formar uma lista de livros. Para os séculos primeiro e   segundo, Cullmann

 
    [45] O. Cullmann, "The Tradition", The Early Church (Philadelphia:   Westminster, 1956) 59-99. Cf. W. G. Kümmel, Introduction to the New Testament   (London: SCM, 1966) 358, "Reconhecer o que estiver no cânon adequadamente, não   podemos senão na base do testemunho apostólico contido no cânon."    
 

argumentou faz muito tempo que a emergente tradição e a regra de fé (credos) eram mais   autoritativas que os escritos que as contém. Essa é a verdade em que a Doutrina Católica   sempre insistiu. Há importantes elementos da tradição cristã não contidos nos Escritos   Apostólicos, estes que não têm senão importância relativa como estágio na transmissão   daquela tradição. Outros aspectos dos Escritos Apostólicos parecem a muitos ser teológica   e eticamente problemáticos – o antijudaísmo de alguns deles não é senão um exemplo   – e agora temos um critério que transcende tanto a nós mesmos como a Igreja que dá   justificativa teológica para essa conclusão, isso é incompatibilidade com a Sagrada   Escritura como sola sriptura que está acima da Igreja.

 

A proposta de abolir o Novo Testamento a favor de tradições cristãs e midrash cristão,   tem também conseqüências para o trabalho da nossa Sociedade. Não proponho seriamente   renomeá-la de Canadian Society for the Study of the Hebrew Bible and its Post-biblical   Midrash / La Société Canadiènne pour l’Etude de la Bible Hébraique et son Midrash   Post-biblique. Todavia, espero que muitos de nós adotem essa perspectiva. Refiro-me   especialmente àqueles que, como eu, estudam os Escritos Apostólicos. Estamos livres dos   grilhões de pensar que devemos tentar a encontrar antítese à Escritura onde não está   intencionada nenhuma, mas temos também uma séria e difícil obrigação. Esta é procurar   a recobrir a tradição midráshica que começou quando a Escritura chegou a ser Escritura   primeiramente, e a situar nossa interpretação dos Escritos Apostólicos para dentro   daquela tradição. Isso não somente quer dizer reconhecer a legitimidade de outros   entendimentos midráshicos, mas sim também ver que os escritos que estudamos subordinem-se   à suprema autoridade da Escritura e estejam sendo entendidos a partir desta perspectiva.

 

Retornamos a Brevard Childs, mas pisamo-lhe na cabeça. A Igreja, de fato, necessita dum   cânon que funcione como critério transcendente para sentenciar entre tradições eclesiais   conflitantes. Procuramos aquele cânon, porém, não na coleção de certos escritos   eclesiais da lista, mas sim na autoridade à qual eles mesmos apelam: a Escritura de Israel   é aqui a nossa sola scriptura.

 
  © 1980 Lloyd Gaston.

Tradução: Pedro von Werden SJ.
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