50 anos de Nostra Aetate: Evolução, presente e futuro do relacionamento cristão-judaico

Com o final de 2015 conclui-se também uma série de comemorações que marcaram os 50 anos da realização do Concílio Vaticano II (1962-1965). Dentre os documentos concebidos durante o maior evento eclesial do século passado consta a declaração conciliar Nostra Aetate, sobre a relação da Igreja católica com as religiões não-cristãs. O relacionamento após 50 anos do documento segundo o olhar de um judeu.

Os judeus não devem ser apresentados nem como condenados por Deus, nem como amaldiçoados, como se isso decorresse das Sagradas Escrituras (Nostra Aetate, nº 4).

… os judeus, objeto não mais de reprovação e desconfiança, mas de respeito, amor e esperança (Paulo VI, homilia de promulgação da Declaração Nostra Aetate).

A religião judaica é de certo modo “intrínseca” à religião católica. E encontrar Jesus é encontrar o judaísmo (são João Paulo II).

Apesar das diferentes perspectivas, nós professamos o mesmo Deus. E na sua bondade e sabedoria infinita, Ele abençoa sempre o nosso compromisso em benefício do diálogo (papa Francisco, na audiência concedida em Roma ao International Council of Christians and Jews, ICCJ, durante sua conferência comemorativa, 30/6/2015).

A Nostra Aetate continua servindo como bússola na reconciliação.

E, como declarou o papa Francisco, diante da atual onda de antissemitismo, “não é possível ser cristão e antissemita”, pois não se pode compreender a Igreja sem o judaísmo (cardeal Kurt Koch, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e da Comissão para as Relações Religiosas com os Judeus, na solenidade em São Paulo, 2/9/2015).

O desenvolvimento do diálogo católico-judaico tem sido de particular relevância na cidade, e há uma firme disposição para continuar avançando (cardeal Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, na solenidade em São Paulo, 2/9/2015).

Nostra Aetate (“Em Nossa Época”)

Celebraram-se há pouco ao redor do mundo importantes eventos comemorativos dos 50 anos da promulgação pelo Concílio Vaticano II da Declaração Nostra Aetate, e particularmente do seu 4° ponto, sobre a “religião judaica”. O apogeu deles, em Roma, foi o congresso celebrado no Cardinal Bea Center da Universidade Gregoriana, com representantes das maiores religiões do mundo. O evento culminou com a Audiência Geral do papa em 28 de outubro, data exata do cinquentenário do documento.

No Brasil, nesses mesmos dias, foram marcantes as comemorações promovidas pelas religiosas e religiosos de Nossa Senhora de Sion, com a participação dos Jovens pela Paz, grupo constituído por cristãos, judeus e muçulmanos.

E por que tanta celebração? Trata-se do documento que se tornou referência na transformação das relações católico-judaicas após quase dois milênios de preconceitos, hostilidade, com períodos de perseguição e violência contra os judeus. E seu impacto teve ressonância positiva na maioria das outras igrejas cristãs.

A Declaração esclarece que aquilo que se perpetrou na Paixão de Cristo “não pode indistintamente ser imputado a todos os judeus que então viviam, nem aos de hoje”, refutando assim a acusação de deicidas costumeiramente lançada contra as sucessivas gerações do povo judeu. E, citando o Apóstolo Paulo, lembra que “os judeus ainda são amados por causa de seus pais, porque Deus não se arrepende dos dons e da sua vocação”.

Dentre outros aspectos, ela salienta o “tão grande patrimônio comum entre cristãos e judeus”, e “lamen-ta os ódios, as perseguições, as manifestações antissemitas, em qualquer tempo e por qualquer pessoa dirigidas contra os judeus”.

E declara: ”De resto, a Igreja sempre teve e tem por bem ensinar que Cristo, por causa dos pecados de todos os homens, sofreu voluntariamente e por imenso amor se sujeitou à morte, para que todos conseguissem a salvação”.

Mas a labareda que representou a Nostra Aetate não surgiu por combustão espontânea; a gênese do documento foi fruto do coração e do itinerário ecumênico do saudoso papa são Joao XXIII, que durante a Segunda Guerra Mundial foi Delegado Apostólico na Turquia e ali testemunhou e se sensibilizou ante a monstruosidade da Shoah (o Holocausto) e se empenhou pessoalmente em salvar milhares de judeus.

Em 1947, intelectuais e religiosos cristãos e judeus de 19 países reuniram-se em Seeligsberg, na Suíça, e redigiram um apelo conhecido como “Os Dez Pontos de Seeligsberg”, solicitando às igrejas cristãs que modificassem e renovassem seus conceitos. O evento também preconizou a criação do ICCJ.

Um dos grandes intelectuais de Seeligsberg foi Jules Isaac, historiador judeu francês que perdeu esposa e filha no Holocausto. Em junho de 1960 ele foi recebido por João XXIII e lhe entregou um dossiê com 18 sugestões para eliminar do catolicismo o ensino do desprezo e os aspectos que favoreciam o antissemitismo. Ao se despe-dir, perguntou-lhe: “Santidade, posso levar comigo alguma partícula de esperança?”. Ao que o papa respondeu: “O senhor tem direito a mais do que uma esperança”.

Com intuição profética, João XXIII entregou o dossiê ao cardeal jesuíta alemão Agostinho Bea, seu principal auxiliar na gigantesca tarefa de aggiornamento da Igreja. O projeto que viraria a Nostra Aetate começou sendo concebido como Decretum de Judaeis. Era para ser o capítulo quarto do esquema sobre o ecumenismo.

Ele teve um percurso incerto, turbulento e longo – longo mas curto, se pensarmos que o caminho até esse momento demorou quase 20 séculos. João XXIII, falecido em junho de 1963, não viveu para ver o resultado final.

Após inúmeros entrechoques de tendências e até de libelos acusatórios, já com o incremento de seções dedicadas a outras religiões não cristãs – com especial carinho à muçulmana, que também é uma fé abraâmica –, e sem sequer mencionar o judaísmo no título, o conservadorismo finalmente foi superado graças à inabalável perseverança do cardeal Bea. A Declaração foi aprovada por esmagadora maioria de 2.221 votos a favor e 88 contra, e promulgada no dia 28 de outubro de 1965.

Em consonância com outros documentos, a Nostra Aetate demonstra o empenho do Concílio no ecumenismo, no diálogo inter-religioso e na promoção da liberdade religiosa.

Evolução e desdobramentos

É imperativo reconhecer a efusividade das intervenções de são João Paulo II, que dinamizou e potenciou a Nostra Aetate. Em sua visita à sinagoga de Roma em 1986, a primeira de um papa, orou e, citando-a, lamentou ódios, perseguições e manifestações antissemitas. “Temos com o judaísmo uma relação que não temos com nenhuma outra religião. Vocês são os nossos irmãos prediletos e, de certo modo, posso dizer que são os nossos irmãos maiores”, declarou na ocasião.

Foi sob João Paulo II que, em 1992, publicou-se o Catecismo da Igreja Católica, documento fundamental para compreender o Magistério atual da Igreja também sobre o relacionamento católico-judaico, cuja preparação foi confiada a uma Comissão presidida pelo cardeal Ratzinger, futuro papa Bento XVI. Muitos dos seus parágrafos incorporam os frutos do Concílio Vaticano II e vão mais além. Por exemplo, no tocante à milenar “acusação de deicídio”, no número 597 esclarece que “só Deus conhece (…) qualquer que tenha sido o pecado pessoal dos intervenientes no processo (Judas, o Sinédrio, Pilatos)”.

Ou, como lemos no do número 840, “(…) quando se considera o futuro, o povo de Deus da Antiga Aliança e o novo Povo de Deus tendem para fins análogos: a esperança da vinda (ou do regresso) do Messias.”

Um outro grande passo dado por João Paulo II foi o reconhecimento diplomático, em 1994, do Estado de Israel, elemento central da identidade judaica contemporânea.

Coadjuvantes

A Nostra Aetate tornou-se o eixo dos aprimoramentos subsequentes da Santa Sé e das Conferências Episcopais (no Brasil, a CNBB e a sua Comissão Nacional de Diálogo Católico-Judaico), com o intenso apoio de numerosos outros atores. Como, por exemplo, do lado católico, ordens religiosas cujo carisma virou afim (notadamente as religiosas e os religiosos de Nossa Senhora de Sion, de incansável atuação) e também movimentos, como o dos Focolares (empenhados na tarefa há 40 anos, seguindo a visão de Chiara Lubich), assim como universidades e institutos.

Do lado judaico, lideranças rabínicas e comunitárias, a ADL / B´nai B´rith e múltiplos ativistas; deve-se destacar – como fez o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista, na recente solenidade em São Paulo – o pronunciamento Dabru Emet (“Falai a Verdade”) emitido no ano 2000 por um grande grupo de rabinos e eruditos, indicando ter chegado a hora de os judeus aprenderem sobre os esforços dos cristãos para honrar o judaísmo, e de refletirem sobre o que o judaísmo tem a dizer a respeito do cristianismo, propondo oito breves afirmações para essa convergência. Nesse mesmo ato o presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib), Fernando Lottenberg, afirmou que o organismo “tem no diálogo inter-religioso um de seus principais eixos de atuação”.

Não foi menor o rol de entidades como o ICCJ e suas afiliadas no mundo (no Brasil, o Conselho de Fraternidade Cristão-Judaica, CFCJ), promotoras de um diálogo mais abrangente, que inclui fieis de outras denominações cristãs.

O futuro: esperanças e desafios

Os anos transcorridos desde a Nostra Aetate conseguiram enriquecer uma minoria que teve oportunidade de se envolver, principalmente elites religiosas e intelectuais. Mas, para atingir o desejado, é preciso superar três grandes desafios: 1) integrar na caminhada um universo muito maior; 2) aprofundar e divulgar o compromisso, tendo como guia o roteiro contido num novo documento, Os Doze Pontos de Berlim (disponível em português no link www.iccj.org), desenvolvido pelo ICCJ para atualizar Os 10 Pontos de Seeligsberg; 3) é absolutamente essencial envolver as novas gerações.

Como disse o papa Francisco, o primeiro papa a tornar-se sacerdote após a promulgação da Nostra Aetate, “o diálogo é uma escola de humanidade (…) e, nesse sentido, uma atenção especial deve ser dada aos jovens”.

Para desmistificar definitivamente o magistério da Igreja sobre a questão, é fundamental estarmos todos cientes do que o Catecismo da Igreja Católica diz a esse respeito.

Editorial remarks

* O autor Carlos Barbouth foi presidente judaico do Conselho de Fraternidade Cristão-Judaica e membro da diretoria do International Council of Christians and Jews
Publicado pela primeira vez em “Cidade Nova”, Edição 596, No 12, Dezembro 2015.