A verdade vos libertará

A verdade vos libertará

Raymond Apple

Numa

encarnação anterior – e certamente a gente tem permissão para falar de encarnação num evento

inter-religioso – eu era um trabalhador jovem profissional.

De lá para cá andava pelas Ilhas Britânicas, visitando clubes de jovens e organizando ou

advogando programas religiosos.

Em um clube de jovens um teenager [entre treze e dezenove anos], possuidor da sabedoria

incomparável dos muito jovens decidiu que estivesse já na minha senilidade, embora tivesse

provavelmente não mais que 24 anos ou assim.

“Qualquer um acima de 20 é um já-era, me informou com segurança”.

Vendo que isso aconteceu faz muitos anos, o homem jovem sábio agora é provavelmente de idade

média com crianças próprias nos vinte ou ainda mais idosas.

A fortunadamente, ele provavelmente não se lembra da sua permuta comigo, mas não só me lembro,

mas o gostaria aplicar nesta tarde.

Por o CCJ victoriano [Conselho Cristão-Judaico da Victória, Austrália] ter 20, pode bem

ser preciso perguntar se essa organização, a qual houve os seus inícios num tempo altamente

propício e sob auspícios particularmente impressivos, esteja no caminho de chegar a ser um

já-era.

Tentarei abordar essa questão no curso dessas observações, embora me possa tomar um pouco de

tempo para chegar a uma resposta.

Na obra do CCJ, de fato na colaboração inter-religiosa de espécie mais ampla, tenho sido

observador e jogador por anos incontáveis, primeiro naquela encarnação do Reino Unido e depois

por bem três décadas no CCJ na Austrália.

Assim, creio que esteja qualificado para assessorar o estado de arte em geral e no CCJ em

particular.

Naturalmente, é tentador usar critérios superficiais como tais de quão muitas pessoas são

membros saldados, se há bom atendimento nos encontros e outros programas e se a organização

balança os seus livros.

Esses não são assuntos sem importância, mas a questão real vai mais profunda.

Importa-se com se a obra ajudou a construir um clima de harmonia, entendimento e respeito mútuo.

A resposta é: sim – mas ela é também: não.

Como todos os meus colaboradores, tenho os meus momentos quando me alegro de como bem sucedidos

somos, como orgulhosos somos para dizer: “Realmente entendemos uns aos outros!” Tenho também os

meus momentos de desilusão, quando tristemente concluo: “Quão pouco entendemos realmente uns aos

outros!”

Um trauma na obra inter-fés veio em 1967 na véspera da Guerra dos Seis Dias. Era um choque:

encontrar cristãos dizendo ou, pelo menos, implicando: “Porque os judeus estão tão agitados?”

e os judeus dizendo: “Mas pensávamos que os cristãos sentissem a nossa pena!”

Seymour Cain, professor de filosofia americano, disse em 1979: “O que precisa ser feito para

discutir honesta e abertamente porque nós judeus e cristãos somos parentes, mas estranhos, uns aos

outros”.

Ainda não temos sucedido completamente em descobrir a identidade única um do outro. Para

judeus, é a história, a esperança, a terra e nacionalidade, bem como a religião, ou antes, todos

fazem parte da religião para os judeus. Para os cristãos, é a palavra feita carne, a caída da

pessoa humana, a graça de Deus, a intermediação e a ressurreição. Ao judeu, como Martin Buber

disse, o cristão está ousado demais; ao cristão, o judeu obstinado demais.

O resultado? O muro de separação, atual ou virtual, que existe ainda, apesar da alegria que

sentimos em freqüentemente considerando o outro um membro da nossa família própria.

Deixai-me dizer, em parênteses, que entendo essa referência à família num sentido mais

metafórico!

Penso em ocasiões na minha própria família, quando teria sido impensável não convidar

padres, freiras, clérigos e colegas de várias religiões, fazíamos parte um do outro.

Mas de volta ao muro, um Muro de Berlim que nos separava muito antes que se jamais pensava nele

em Berlim. Se fosse meramente o que Paulo chama “o muro no meio da partição”, não seria tão

mal. Infelizmente, está mais parecido, para citar Paulo outra vez, ao ter sido, durante da maior

parte do tempo, “o muro separador de hostilidade”.

O que construiu o muro? Duas convicções a respeito da verdade.

O que removerá o muro? Porque estamos distintos cada um, a divisão permanecerá. A questão é

se vá ser o parapeito que separe um vizinho amigo do outro, e não um muro alto, sólido de

hostilidade.

Não será fácil, apesar da nossa reconciliação e cordialidade. Pode ser que nunca vamos

alcançar um consentimento completo sobre verdade – mas poderemos juntamente alcançar algumas

verdades sobre verdade.

“A verdade vos fará livres”, é dito cristão.

O seu antecedente judaico é a palavra na Mishnáh Avot: “Ninguém é tão livre como aquele

que está cometido à Toráh”, havendo uma frase de propaganda, torat emet, “A Toráh de

verdade”.

Relembras da questão de Pilatos: na versão de Francis Bacon: “’O que é verdade?’ Pilatos

disse gracejando. Bacon continua em relação a Pilatos: “(ele) não esperaria para uma resposta”.

Pilatos não era um caráter gentil, apesar de Mel Gibson, podendo oferecer linhas de jogar fora

e a seguir ir embora sem se preocupar com a reação dos outros. Pilatos não podia esperar. Nós

não temos esse privilégio.

Não temos escolha além de ficar e lutar com a questão: “O que e verdade?” – em termos

judaicos: “O que é torat emet?” Qual emet é emet – tua verdade ou minha

verdade?

Até 9/11, até 7/7, pensávamos que pudéssemos arreganhar os dentes e sorrir e ir embora com

gracejos convencionais como “Todos eles são caminhos a Deus a final!”

Mas agora temos de escolher, agora que temos sido interrompidos em eventos que mostram que há

algumas pessoas cujo cometimento feroz com a verdade delas as impele a querer conquistar o mundo, de

modo totalmente sem corte e literalmente. Outros não têm intenção de ir tão longe, conquista do

mundo não é a sua agenda, mas crêem certamente na coerção espiritual, mesmo se esta signifique

não ter consideração para com a convicção e consciência de outras pessoas e as deslegitimem.

Temos boas razões de temer ambas as aproximações. O problema é o mesmo do ponto de vista

conceitual, sem considerar o modo em que as pessoas expressem a sua verdade própria.

O rábi Joseph B. Soloveitchik disse: “É muito fácil para zelotes e negativistas resolverem

problemas – vêem o mundo inteiro colorido preto e branco.”

Zelotes e negativistas não se engajam em diálogo.

O diálogo requer a capacidade de escutar, não justamente de falar, sussurrar, não gritar, ver

em outros a face dum irmão ou irmã, agradecer a Deus por um outro.

Há diálogo quando compartilharmos informação, há diálogo quando chegarmos a sermos bons

amigos, há diálogo, quando juntarmos forças para uma causa comum.

Anos atrás, o Rebbe de Lubavitch e outros avisaram contra intercâmbio teológico profundo, mas

esse é só um nível do diálogo. É também diálogo quando sentamos juntos, caminhamos juntos,

até rimos juntos.

Diálogo em todos os sentidos é um compartilhar em que todos fazem lugar um ao outro, não

justamente porque realidades pragmáticas o demandam, mas se podemos encontrar a estrutura

conceitual apropriada que podemos basear numa idéia sustentadora.

Recomendo que vejamos o diálogo como reconhecimento de que, sem consideração de propriedade ou

verdade última, nós todos creiamos na nossa verdade própria, capacitando a minha verdade e a tua

verdade viverem juntas e deixando a determinação final para Deus.

Todos que crêem devem prestar atenção às palavras de Solomon Schechter, um grande professor

judaico de um século atrás, que usava dizer aos seus estudantes: “Deixa um pouco para Deus.”

Ninguém de nós precisa ser o policial de Deus, também não precisamos assaltar a torre

pretendendo ser Deus. Deixemos Deus ser Deus!

Na religião paradoxos são necessários. Submeto que haja necessárias também ambigüidades…

ambigüidades que permitam que idéias discrepantes co-existam.

Pensei que era aquele que descobrira esse princípio, mas quanto mais estudava a minha própria

tradição, tanto mais me encontrei entrincheirado, quase automático.

Encontrei-o na liturgia judaica, a qual fala de Deus como Avinu Malkenu [nosso Pai, nosso

Rei] – um parente estreito e compassivo, o qual é também um rei que está sentado num trono

sublime de justiça.

Encontrei-o na ética judaica, com a sua tensão criativa entre os três princípios de verdade,

justiça e paz que a Mishnáh diz que são a fundação do mundo.

Se Pilatos podia perguntar: “O que é verdade?” e Platão: “O que é justiça?”, Dickens

perguntou: “O que é paz?” Nenhum desses conceitos pode ser definido em isolação, pois verdade

e justiça não coincidem sempre, e nem a uma nem a outra se senta bem com paz.

A halakáh judaica traz ambigüidade ao nível prático quando fala do

paciente seriamente doente para quem a verdade plena sobre a sua condição possa arruinar a sua paz

mental, sendo justiça que os requisitos de paz tenham primazia acordada.

Na religião, a necessidade de ambigüidade tem sido reconhecida: por exemplo, a ambigüidade

entre livre e determinismo, entre transcendência e imanência, entre fé e obras, entre este mundo

e o depois deste.

Vejo ambigüidade, quando Coélet pergunta o que é melhor, o dia da morte ou o dia do

nascimento.

O Talmude nos introduz a tão muitos debates sobre assuntos que não podem facilmente co-existir,

não só no mundo prático da vida halákica, mas nas questões últimas tais como se no fim a

pessoa humana deveria ser criada ou não.

Significa isso que qualquer coisa é kosher, cada coisa é relativa e nada é nem

verdadeiro ou não verdadeiro em si?

O Talmude sabia a resposta faz muito tempo – e formulou a resposta a ela.

Ele reporta as muitas diferenças entre a Escola de Shammai e a Escola de Hillel. “Ambas”,

decidiu, “são as palavras do Deus vivo.”

Mas disse duas outras coisas: “A halakáh (na maioria das referências)

está de acordo com a Escola de Hillel”, isso é que, na análise final, há de ter uma regra e

duas, “Pois as Escolas tinham as suas disputas, acordavam o respeito uma da outra.”

Algumas coisas podem ser assentadas na terra, e outras têm de deixadas na cesta de duro-demais

teológica, na fraseologia do Talmude, para aguardar a vinda de Eliyah [Elias]; nos termos de

Schechter: “deixar um pouco para Deus”.

Há duas verdades para a nossa situação.

A primeira é que há verdades em tradições várias, mas o cometimento mais profundo deve ser

à sua própria; a segunda é que, embora as nossas identidades distintas sejam separadas por um “muro

no meio de separação”, os outros devem ser respeitados, não humilhados ou deslegitimados,

transformando a separação num muro divisor de hostilidade.

A evidência num circulo completo ao redor de nós é há hoje falta de respeito.

Fanáticos e negativistas dinamitam trens, ônibus, lugares de trabalho ou culto e co seres

humanos. Para eles, a vítima não é nada, seja tão preciosa, talentosa, importante, decente,

tentando simplesmente para viver em dignidade como for, tudo está dispensável no assalto de

ferocidade.

Finalmente, o perpetrador também não é nada, não fazendo contribuição nenhuma à

civilização, contribuição nenhuma a coisa alguma, nem para a causa própria dele ou dela.

Temos sido todos impressionados pelo 614º mandamento de Emil Fackenheim: “Sobrevive! Não dá

ao Hitler a gargalhada última!”

Embora a humanidade em geral não esteja, no ensino judaico,  ligada pelos 613 mandamentos,

com ou não do 614º adicionado por Fackenheim, ela têm as Sete Leis Noahicas, às quais

poderíamos adicionar uma oitava – “Sobrevive! Vive! Preserva o mundo e a sua civilização!”

O nosso dever é encontrar um ao outro, não destruir um ao outro.

Parte daquele dever é reconhecer as ambigüidades necessárias que possibilitem encontrar

espaço para nós todos.

Estou certo que está a minha tradução que está possuída da verdade mais verdadeira, mas o

Juiz último não sou eu ou qualquer mortal.

Espero que no fim dos dias, quando toda a humanidade andará junto ao monte do Senhor, todos

viverão pelas Escrituras Hebraicas.

Mas os detalhes não estão ao meu alcance. Não creio que possa trazer o momento mais perto por

forçando o meu Judaísmo ou outros sem considerar a consciência própria deles. Nem, espero,

outros vão ter de me forçar para dentro do campo deles.

Prefiro as grandes palavras do profeta Micah [Miquéias]: “Deixa todos os povos andarem

no nome do seu deus, mas nós andaremos no nome do Senhor nosso Deus para sempre.”

O muro de separação pode ficar, mas para segurar que nunca outra vez vá chegar a ser um muro

divisor de hostilidade, precisamos dedicar a vida no que os sábios hebraicos chamam “o mundo de

ação” para viver como irmãos e irmãs amantes.

Há uma interpretação rabínica maravilhosa do Salmo 85, versículo 11: “Graça e verdade se

encontram, retidão e paz se beijaram uma a outra.”

Ao rábis dizem que o versículo está falando de dois irmãos, Moisés e Aarão.

Um é o símbolo de verdade, o outro de graça.

Precisam um do outro.

Depois de 20 anos, o CCJ tem tanto a celebrar.

Alguns das mentes mais finas e espíritos mais nobres no espetro religioso lhe deram as suas

energias e inspiração.

Em um ou outro nível ajudava derrubar estereótipos velhos que foram deixados para depois dos

tempos de hostilidade.

Pode não ter penetrado as raízes fundamentais bastante longe ou suficientemente, mas isso é

tarefa para o futuro.

Pode não ter penetrado todos os escalões mais altos, ou onde tem penetrado, os seus efeitos

podem ter sido parciais e a sua recepção seletiva.

Mas despachou documentos academicamente credíveis, atracou-se com uma série de assuntos

conceituais, formulou posições teologicamente sustentáveis e apontou advocacia sobre assuntos

nacionais que precisavam de uma voz religiosa comum.

É verdade, documentos e diálogos por si mesmos não criam revoluções, mas fazem a sua

contribuição inexorável própria em direção à revolução de atitudes e idéias que em tempo

fazem realmente uma diferença.

Se as minhas observações desta noite ajudarem para debater em frente, serei contente.

Entrementes, há vigor e visão na organização que segura que está longe de chegar a ser como

era.

CCJ de Victória, aniversário alegre e mazal tob[boa sorte]!


Tradução Pedro von Werden SJ. Fonte:  The

Truth Will Set You Free